quarta-feira, 4 de abril de 2007

, lita e os passarinhos

- larga esses papéis, lisaveta!
essa menina não tem jeito mesmo, quase não a vejo brincando com suas bonecas (tantos tostões gastos e as bichinhas nem sequer saíram das caixas!) mas lita, como era mais comumente chamada, nem ouvira o que dizia sua mãe, estrábica mãe, tão atarefada com o almoço que mal percebia que a menina não tinha amigos, tampouco amor pelas bonecas.
- passarinhos, nando! consegue os ver? (dizia lita, em tom baixo ao seu único e imaginário amigo coisas que via e escrevia nos tais papéis)
- essa danada ainda vai me enlouquecer, arnaldo!
*arnaldo = pai de lita, funcionário público, meia-idade, olhos cinzentos.
- deixa a coitada, ela só tem cinco anos, júlia.
*júlia = mãe, dona-de-casa, também meia-idade, olhos desbotados de um num sei quê lá.
sempre discutiam sobre tudo que lita fazia, como passava suas tardes, seus modos tristes demais pra uma garota de cinco anos completados em maio, seus olhinhos sós.. não sabiam como lidar com tais sutilezas.
- deixamos pra ter filhos muito tarde, estamos cansados, lita não puxou à nenhum de nós, querido. além do mais, não tem irmãos, não se comporta como alguém de cinco anos de idade, às vezes parece mais velha do que nós, isso me dá medo.
, a menina nem prestava atenção à discussão dos pais, sempre tão alheia..só escrevia. rabiscava, escrevia. apagava algo, escrevia de novo. passava horas ali, na varanda: ela, seus papéis e nando, talvez seus únicos carinhos. o quarto lhe parecia quadrado demais, laranja demais, a mãe foi quem teimou em pintar daquela cor, lita se irritava com tais tons. a cozinha era sempre cheia de temperos, frutas e louças pra lavar, nem a deixavam chegar perto do fogão. a sala era séria, o pai sempre assistindo o noticiário, quadros escuros pendurados, definitivamente não a faziam feliz. e o que se pode dizer do banheiro? só se sabe que lhe agradava azulejos amarelos. mas a varanda, ah! a varanda lhe proporcionava um mundo onde tudo podia acontecer, até mesmo ser apenas lisaveta, cheia de sardas e sonhos ainda crescentes. mas e o que fazia com seus doces rabiscos depois de feitos? guardava-os no armário, com um cuidado de mãe. ninguém mexia, talvez nem soubessem da existência deles. o fato é que lita depositava nesses rabiscos todas as suas lágrimas contidas, lágrimas doridas e incompreendidas demais, vindas de uma menina de cinco, cinco anos.

3 comentários:

Paranóia Ululante disse...

ok, dona erica, gostei muito! principalmente da falta de letras maiusculas, que deixa o texto gentil e inocente, e da lisaveta, sugiro que tenha continuação dessa estória, ou das peripécias de menina, que cada um encontra dentro de si.

esperava menos pelo que vc me falou de rascunho, tangosa. mas tá lindo, sim.

tassita

madá disse...

talvez lita precise saber que nós temos todos os sonhos do mundo.

e conseguimos sorrir, então.

leonardo vila nova disse...

o mundo tá cheio de litas por aí.. e essas litas, certas vezes, acham pelo mundo o que andam procurando.. pessoas de igual disposição para a curiosidade fraternal e intensa de um mundo que precisa de mais cores, de mais sensibilidade, mais abraços.. acho que eu sou uma lita, você também, Fel também, Lari's também.. a gente se encontrou por aí.. num foi? E a beleza se fez presente.